Janela Infinita/ Infinite Window 18.11.22-14.1.23

Por que é que o mar nos fascina tanto?
Por que é que o mar fascina tanto, tantos fotógrafos?
Será o mesmo fascínio?

O mar é o espaço da desterritorialização absoluta, definida senão pelas suas infinitude e imensurabilidade, pela circulação livre das forças do Caos, pela impossibilidade de a estas atribuir uma forma [um enquadramento, tal como o desenho de um quadrado na areia, é já uma forma de submissão e uma possibilidade de controlo].

Quando aprendemos a nadar, apreendemos o corpo do mar pelo nosso corpo. Dá-se uma conjunção de velocidades,[1] que se traduz num movimento fluido, ininterrupto, em que os dois corpos formam um corpo uno [misterioso corpo]. Não existe uma acção deliberada do pensamento, pelo contrário, os gestos são amplos e leves e, por momentos, a gravidade desaparece [o corpo-mar tem destas coisas]. Existe um só fluxo gerado pela consciência do corpo, grande matriz das forças sensíveis, em que um gesto corresponde a uma variação de intensidade e não a um movimento de um braço e de outro, ou de um par de pernas [foi Espinosa quem revelou o segredo].

Se nadamos muito bem, o mar torna-se nosso cúmplice de liberdade. Nós e o imenso mar. Inspiramos o seu cheiro, transformando os pulmões em maresia, enlaçamo-nos no seu canto e deixamo-nos, tranquilamente, embalar [a contemplação é coisa de românticos, que, no entanto, souberam apreender e tomar para si a ambivalência inescapável que o mar encerra].

Se não soubermos nadar, ou se nadarmos mal, tememos o mar. Podemos contemplá-lo à distância, admirar a sua beleza inefável, cientes contudo que, no mar, podemos desaparecer, quando o grande espaço da desterritorialização coincide com uma das suas linhas de morte (a linha de fuga absoluta, que não se deixa metamorfosear[2]).

O fascínio, que sentimos pelo mar, advém desta ambivalência. O informe não possibilita qualquer grau de indiferença. Prende-nos ao primeiro movimento do nosso olhar, para criar em nós a grande tranquilidade de um doce embalar ou o terror sufocante de um último sopro. Quando olhamos o mar, vemo-nos sempre a nós. When you see your reflection in water, do you recognise the water in you?[3]

Capturar o mar é uma forma de o domesticar e o início de um paradoxo que a fotografia continua a ensaiar. Como controlar o incomensurável num enquadramento, persistindo nos seus mistérios? A fotografia terá de combater um dos seus maiores desafios - a redução[4] - e eliminar a sua qualidade de representação. O mar, pertencente à categoria do sublime, contribui, significativamente, para esta remoção, aproximando-se da abstracção [o que muitos fotógrafos procuram nas suas séries: o mar como espaço primordial da vida e paisagem pré-humana[5]].

Dos vários exemplos de séries fotográficas em torno do mar - desde Seascapes de Hiroshi Sugimoto, à série Still Water (The river Thames, for Example) de Roni Horn (embora sejam fotografias do rio Thames, enquadramo-las nesta tradição fotográfica, devido aos motivos que impulsionaram a artista a fazer esta série[6]), passando ainda por um conjunto de fotografias de Wolfang Tillmans e New Waves de Takashi Homma - depreende-se o fascínio que os fotógrafos têm pela relação íntima que existe entre fotografia e mar, como se este permitisse (e)levar as matérias fotográficas a esse limiar em que o fotografado se separa, completamente, do referencial, transformando-se em matéria pura de fotografia: instante lumínico fulgurante, simultaneamente, universal (donde a preocupação comum a este tipo de séries com a fixação de um plano, de uma perspectiva e de uma estrutura de composição[7]) e singular (captando as variantes metereológicas e atmosféricas, que doam à fotografia a sua qualidade irredutível).

A superfície do mar é um espelho que absorve e reflecte a luz do céu, absorve e reflecte as cores do fundo do mar, misturando reflexos nos movimentos ondulatórios, sem qualquer artificialidade. A amplitude é plena, a vastidão infinita e os elementos naturais - nuvens, nevoeiro, maresia, espuma… - falam a linguagem primordial da câmara fotográfica, o olho artificial que revela o inconsciente do tecido da realidade, os interstícios onde a matéria se faz expressiva.

 

Inserindo-se nesta (já) longa tradição, o fotógrafo Nuno Cera, à semelhança daqueles, tem viajado por lugares muito distintos e distantes entre si, fotografando o mar e, por vezes, superfícies de rios. A série Janela Infinita apresenta uma pequena selecção desta sua prática, numa sequência que evidencia, ao contrário dos exemplos referidos, as diferenças e as singularidades de cada lugar. Cera opta por não privilegiar um plano fixo, preferindo perspectivas e enquadramentos distintos. Por vezes, vemos secções de céu (Janela Infinita #2 - Mar Atlântico 1 e Janela Infinita #7 - El Clot), por outras, notamos traços que remetem para a proximidade da terra (Janela Infinita #1 - Baía Tai Van, Janela Infinita #6 - Baía Cadaqués e Janela Infinita #7 - El Clot).

Não será a variabilidade infinita de uma invariabilidade estrutural que interessará, primeiramente, a Cera, embora o ritmo e a sequência, dados a esta série no espaço da exposição, contribuam para essa percepção, mas antes como é que o mar (e as superfícies de certos rios) - esse objecto multiplicador de imagens, aparentemente, abstractas - capta as especificidades de um lugar: a qualidade da luz (indissociável das condições metereológicas e atmosféricas e das condições física, geológica e topográfica), as propriedades (incluindo a modelação) dos subsolos (mais rochosos ou arenosos, segundo as mais variadas composições minerais), as vicissitudes resultantes das acções dos seres humanos (como a poluição visível em Janela Infinita # 1 - Baía Tai Van), ou a presença de diferentes espécies animais (indiscerníveis na luz rasante ao longe de Janela Infinita #7 - El Clot).

As fotografias correspondem a fragmentos extraídos de uma peça maior de limites indefinidos e insondáveis, interessando a Cera o conhecimento que se consegue obter a partir delas. Inevitavelmente, há neste conhecimento um certo grau de objectividade que se contrapõe à natureza subjectiva e metafórica do objecto fotografado, levando-nos a considerar que Cera, com esta série, se encontra entre uma abordagem tipológica (tal como sistematizada por Bernd e Hilla Becher), em que a fotografia reforça as qualidades da coisa ou do objecto em si (como por exemplo, o pregueado das ondas, indissociável da modelação dos fundos do mar e dos leitos dos rios e do movimento das marés, a refracção da luz, a cor, a densidade, a textura, a leveza ou peso da água, entre outras características materiais, criando variações dramáticas entre as fotografias) e as séries já mencionadas, mais próximas de uma tradição pictórica (do Romantismo, relembrando Caspar David Friedrich ou, mais recentemente, as Seascapes de Gerhard Richter), que exploram o potencial poético e metafórico do mar e da água, intensificando, muitas vezes, a ambivalência deste espaço (como referido).[8]

O formato vertical, privilegiado por Cera,[9] acentua a sua posição entre as duas vias, contrapondo ao tradicional horizontal da fotografia de paisagem (proveniente, igualmente, da tradição pictórica), em que a escala (na relação com o corpo humano) e a técnica utilizada para apresentação (impressão em papel Hanhnemuhle montado em diasec) impelem o observador a submergir na fotografias, fundindo-se na sua matéria.

E, por momentos, nas fotografias de Cera somos água, somos mar, somos corpos fluidos a levitar.

Susana Ventura
Novembro 2022

Janela infinita / Infinite Window
Galeria Miguel Nabinho
18.11.2022 - 14.01.2023
Rua Tenente Ferreira Durão 18-B, Lisboa.

[1] Seguimos, aqui, o pensamento de Gilles Deleuze (filósofo francês, 1925-1995) sobre o mar como espaço de desterritorialização absoluta e o que sucede quando aprendemos a nadar (um dos exemplos utilizados por este filósofo para explicar os processos de aprendizagem, que resgatamos, no presente texto, embora num outro sentido).

[2] Seguimos, também aqui, a terminologia deleuziana. Há vários tipos de linhas de fuga, como as linhas de feiticeira, quando geram uma obra criativa, ou as linhas de morte (como por exemplo, nos suicídios).

[3] Roni Horn, Saying Water. Available on https://www.hauserwirth.com/news/13971-roni-horn-saying-water/, consulted on October 2022.

[4] Susan Sontag referia-se à fotografia como uma miniatura do mundo, não necessariamente vendo nesta miniaturização uma fraqueza, mas um reforço da ligação da fotografia à realidade (ou modelo da realidade).

[5] Hiroshi Sugimoto considera que a sua série Seascapes corresponde a uma tentativa de representar “o estado pré-humano da paisagem, como se fosse o primeiro homem a aparecer neste planeta que é a terra”. Sugimoto apud Fried, in Michael Fried, Why Photography Matters as Art as Never Before. New Haven and London: Yale University Press, p. 294.

[6] Roni Horn é, igualmente, uma referência importante para Nuno Cera.

[7] Por exemplo, Sugimoto faz coincidir sempre a linha do horizonte com o meio da fotografia para obter duas secções (de céu e de mar) perfeitamente iguais em dimensões.

[8] Por exemplo, Roni Horn insiste sempre nesta ambivalência e as suas próprias fotografias do rio Tamisa contrapõem o que, muitas vezes, a artista chama de black water (onde os corpos - de suicidas - desaparecem) a uma legenda (e todas as suas fotografias obedecem a esta composição) que estimula um momento contemplativo e poético, recorrendo a excertos de textos e poemas de autores reconhecidos, como Joseph Conrad, Charles Dickens, William Faulkner ou Emily Dickinson.

[9] Existe uma única fotografia em formato horizontal (Janela Infinita #5 - Mar Atlântico 2).


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